domingo, 27 de julho de 2025

Paredes de vidro


Cabeça de ceifeiro alentejano (1941).
Dórdio Gomes (1890-1976). 
Óleo sobre contraplacado (33 cm x 25 cm)

A Escrita ou seja o pensamento convertido em linguagem gráfica é fruto de um diapasão em ressonância sincronizada com a minha caixa do Pensamento.
Com o sentir da minha Alma, a minha caneta é a extensão pantográfica que me transporta sem me subjugar ao palco onde todos somos actores, ainda que uns sejam mais activos e outros mais passivos.
Pode-se falar de Vida ou de Morte, de Acção ou de Renúncia, de Amor ou de Desamor. Tanto faz! Todavia não é a mesma coisa, dar a cara como eu dou ou estar refugiado no anonimato, como acontece amiúde na web. Então, “Que fazer?” Esta é a questão dialéctica e sacramental levantada por Vladimir Ilitch Lenin (1870-1924), no seu livro homónimo de 1902. E isso para mim é uma questão fulcral, já que a vida é feita de saberes, mas também de não saberes, os quais por vezes se transmutam em dissabores. Como eu não me sinto atraído por não saberes, exijo que em nome da verdade e da claridade, dêem o nome e a cara, tal como eu dou. Esse poderá ser um ponto de partida salutar para uma conversa que dê os seus frutos.
Publicado em 30 de Julho de 2013

sexta-feira, 25 de julho de 2025

A Greve dos Correios de 1920 em Estremoz


Fig. 1 - Bilhete-postal que durante a Greve dos Correios seguiu o trajecto
LISBOA-PORTALEGRE-ELVAS-ESTREMOZ.

1. INTRODUÇÃO
Em recente artigo (1), cuja leitura vivamente aconselhamos, o nosso estimado Amigo, Senhor Eng.º Armando Vieira, relata-nos um episódio da Greve dos Correios de 1920 (2), cuja história aí se reconhece está ainda por fazer. A finalizar o seu brilhante artigo sobre este interessante período da nossa História Postal, lança um apelo aos filatelistas para examinarem as correspondências circuladas em Março de 1920, pois a correspondência processada durante o período da Greve é portadora de curiosas marcas apostas por entidades que substituíram os grevistas.

2. MARCA "ASSOCIAÇÃO COMERCIAL DE ELVAS"
Quis o Deus Acaso que num pequeno lote de correspondência que nos foi oferecida por mão amiga, viesse incluído um bilhete-postal (Fig. 1) processado durante o período da Greve.
O referido bilhete-postal (3) foi escrito por D. Maria do Carmo S. de Araujo, moradora na Calçada Marquês de Abrantes, 95-3º esqdº, em Lisboa, a sua amiga D. Lucrécia Rodrigues Fragoso, em Extremôz. Datado de 3 de Março de 1920 (1º dia da Greve dos Correios), foi expedido de Lisboa nesse dia, tendo recebido a flâmula obliterante então em uso na estação de Lisboa Central. A mensagem do bilhete-postal é a seguinte:

"Recebemos a sua estimada carta e as amostras.
Fomos a casa de sua Ex.ma Cunhada perguntar
por seu Ex.mo Marido e disseram-nos que já não
estava. E como veio a greve do c. de ferro, temos
estado à espera. Mas como hoje nos disseram que
seguia o correio por Portalegre, rogo-lhe a fineza
de dizer o que deseja que se faça.
Os nossos cumprimentos e creiam-nos sempre ao
seu dispor.
Sua amiga e muito obrigada
M.ª do Carmo S. de Araujo"

O bilhete-postal apresenta a marca de chegada a Estremoz (4) no dia 26 de Março de 1920, decorridos que são 23 dias sobre a sua expedição! Apresenta ainda duas marcas interessantíssimas. Uma delas, batida a azul-escuro, é da "ASSOCIAÇÃO COMERCIAL DE ELVAS", entidade que substituiu os grevistas elvenses e que atesta o estranho itinerário seguido pelo bilhete-postal: LISBOA - PORTALEGRE - ELVAS - ESTREMOZ. A outra marca, batida a azul esverdeado, é de numerador e tem o número 10556. Pela diferença de cores entre estas duas marcas, estamos em crer que a Associação Comercial de Elvas não numerou a correspondência por si marcada e processada durante a Greve dos Correios. Inclinamo-nos mais para esse número ser um número de ordem da folha de cartolina na respectiva remessa à Casa da Moeda, local onde foi impresso o bilhete-postal.
Está ainda por investigar o modo como foi conduzida no trajecto LISBOA-PORTALEGRE-ELVAS-ESTREMOZ, a mala postal que transportava o bilhete-postal que vimos referindo. Não podemos esquecer que a rede de transporte e permuta de malas postais estava desorganizada, uma vez que também abrangia as Ambulâncias Postais Ferroviárias e que a greve dos Caminhos de Ferro foi agravada pela Greve dos Correios.

Fig. 2 - Não podendo seguir o trajecto usual: LISBOA - BARREIRO - VENDAS NOVAS -
- TORRE DA GADANHA - CASA BRANCA - ÉVORA - ESTREMOZ, o bilhete-postal seguiu
o trajecto: LISBOA – SETIL – ENTRONCAMENTO - ABRANTES - TORRE DAS VARGENS -
 PORTALEGRE - ELVAS. Em 1920 não existia o ramal PORTALEGRE - ESTREMOZ ,
que só foi inaugurado em 21-1-1949. Por outro lado nunca houve ligação ferroviária
entre ELVAS e ESTREMOZ, pelo que entre estas duas últimas localidades,
o bilhete-postal terá tido outro meio de transporte que não o Caminho de Ferro.
Transporte Militar? Transportado pela Guarda Nacional Republicana?
Transportado por recovagem ou por um particular? Não sabemos.

Fazendo fé na mensagem do bilhete-postal, sabemos que ele seguiu no combóio Lisboa-Portalegre no primeiro dia da Greve dos Correios, na qual também participaram os funcionários das Ambulâncias Postais. A consulta do mapa dos Caminhos de Ferro Portugueses dessa época permite-nos tirar duas conclusões (Fig. 2):
- PRIMEIRA: a mala postal saída de Lisboa seguiu por Setil, Entroncamento, Abrantes, Torre das Vargens e Portalegre;
- SEGUNDA: devido à Greve dos Caminhos de Ferro, a mala postal não seguiu em direcção a Estremoz o trajecto usual: Lisboa, Barreiro, Vendas Novas, Torre da Gadanha, Casa Branca, Évora, Estremoz.
Concluído isto, põe-se a questão de saber quem conduziu a mala com o bilhete-postal entre Portalegre e Elvas. Provavelmente a Ambulância Postal que o trouxe de Lisboa e que deverá ter furado a greve. E no resto do trajecto quem conduziu a mala postal onde ia o bilhete-postal? Militares? Guarda Republicana? Particulares ? Não sabemos. É um assunto que procuraremos investigar e que se formos bem sucedidos, divulgaremos. Podemos, porém, desde já assegurar que, de Elvas para Estremoz, o bilhete-postal não seguiu pelo Caminho de Ferro, uma vez que em 1920 não existia o ramal Elvas-Estremoz, assim como também não existia o ramal Portalegre-Estremoz. Para além disso, só uma certeza temos: a marca "ASSOCIAÇÃO COMERCIAL DE ELVAS", batida a azul escuro, é rara.

3. A GREVE DOS CORREIOS EM ESTREMOZ
O interessante bilhete-postal da Fig. 1 levou-nos a investigar os aspectos assumidos pela Greve dos Correios em Estremoz, visando reconstituir a história local daquele período conturbado da nossa História Postal. Para o efeito socorremo-nos da imprensa local daquela época ( os semanários "O Jornal de Estremoz”e "O Eco de Estremoz”) e tentámos fazer uma cronologia da Greve (5):
3 de Março - Após a declaração da Greve Telégrafo-Postal, os empregados da estação (6) da vila (7), solidários com o movimento grevista, abandonam o serviço.
5 de Março - Foi a Estremoz o chefe dos Serviços Telégrafos-postais de Évora, sr. Alegria Vidal, que não aderiu à Greve, acompanhado do sr. Coronheiro Ramos, a fim de persuadir o pessoal de Estremoz a retomar o trabalho. Este, manteve-se firme na sua atitude grevista, tomando então conta da estação o sr. Coronheiro Ramos.
6 de Março - Foi solucionada a greve dos ferroviários, circulando já os comboios, mas mantêm-se em greve os empregados dos Correios e Telégrafos.
13 de Março - O Governo promulga o Decreto nº 6448 (Diário do Govêrno nº 51, 1ª série, 1920), pelo qual são concedidas indistintamente, aos funcionários civis do Estado, determinadas quantias, a título de "Ajuda de Custo de Vida". O funcionalismo retoma então o trabalho, com excepção da maioria dos funcionários dos serviços telégrafos-postais.

Fig. 3 - Estremoz: A estação telegrafo-postal situava-se em 1920 no primeiro andar de um
edifício do Largo da República, à direita e não visível na imagem. 

15 de Março - O pessoal dos Correios e Telégrafos resolveu retomar o trabalho, afixando na porta da entrada da estação (Fig. 3) o seguinte comunicado:
“AO PUBLICO”
“O pessoal telegrafo-postal de Estremoz, revendo "o abono de ajuda de custo da vida", concedido aos funcionários publicos, não discordando dele em absoluto e levando em conta as promessas feitas pelos ex.mos srs. Presidente da Republica e Presidente do Ministerio de que a equiparação de vencimentos será um facto logo que reabra o Parlamento, resolveu retomar o trabalho, não deixando porém de continuar a dar o seu apoio moral ao funcionalismo que ainda fica em luta para se conseguir uma ajuda de custo da vida, mais equitativa.
Estremoz, 15-III-20
O pessoal telegrafo-postal de Estremoz.”

Fig. 4 - Estremoz: Fachada do Café Águias d'Ouro
nos anos vinte do séc. XX.

16 de Março - Um dia depois de ter voltado ao serviço, o pessoal da estação de Estremoz retoma a Greve, afixando no Café Águias d'Ouro (Fig. 4) novo comunicado, desta feita com o seguinte teor:
"AO PUBLICO"
"O pessoal telegrafo-postal desta vila, por razões que expoz por escrito ao sr. Comandante da Brigada (Fig. 5), abandona hoje novamente o serviço, tomando o compromisso de voltar ao seu lugar quando, termine de facto a greve telegrafo-postal.
Garante por sua honra ter feito a distrubuição, de toda a correspondência postal existente e de possível entrega e ter deixado as comunicações telegraficas internas normais, não sendo da sua autoria as avarias existentes nas linhas.
Pelo pessoal telegrafo-postal,
Joaquim Vicente Bento
3º oficial"

Fig. 5 - Estremoz: O edifício onde nos anos 20 do séc. XX funcionava o quartel general da Brigada.

20 de Março - “O Jornal de Estremoz” relata o regresso ao trabalho dos funcionários telegrafo-postais no dia 15 e o retorno à greve a 16, "com o que a opinião pública muito se indignou".
21 de Março - "O Eco de Estremoz” relata também o regresso ao serviço dos funcionários dos Correios e Telégrafos a 15 e o reinício da greve a 16 e exclama: "Que incoerência ! Que desassombro !”Diz ainda desconhecer as razões expostas ao Comandante da Brigada.
O mesmo jornal diz ainda que os sargentos do 4º Grupo de Metralhadoras, aquartelados (Fig. 6) na vila, se ofereceram ao Comandante da Brigada, para prestar serviço na estação telegrafo-postal. Por enquanto não conseguimos apurar se estes préstimos foram ou não aceites e utilizados.

Fig. 6 - Estremoz: O quartel do 4º Grupo de Metralhadoras
situava-se no edifício onde hoje funciona a Pousada da
Rainha Santa Isabel.

24 de Março - O Governo promulga o Decreto nº 6468 (Diário do Govêrno nº 60, 1ª série, 1920), mandando proceder ao levantamento de autos de abandono de lugar ao pessoal dos Correios e Telégrafos que não esteja no exercício das suas funções.
3 de Abril - O Ministério do Comércio e Comunicações envia portarias para publicação (Diário do Govêrno nº 80, 2ª série, 1920), determinando inquéritos às responsabilidades dos funcionários dos Correios e Telégrafos nos actos de sabotagem praticados no material dos serviços, em Março de 1920. Manda ainda publicar portarias nomeando a composição das Comissões de Inquérito. São nomeadas três: uma para Lisboa, outra para o Porto e ainda outra para o resto do país. Esta última tinha por função apreciar os relatórios enviados pelos governadores civis dos diferentes distritos, elaborando por sua vez um relatório em que iria discriminar as responsabilidades dos funcionários implicados nos referidos actos de sabotagem.
“O Jornal de Estremoz” referindo-se à greve diz: "Publicamos para ficar arquivada nas colunas do nosso semanario, a resposta que o governo deu à Imprensa que a pedido daqueles funcionários, foi intermediaria para a solução dum problema que tantos e graves prejuízos deu ao paiz:
“O governo, ouvindo as considerações expostas pelos representantes da Imprensa, resolveu permitir o regresso, aos seus serviços, dos funcionarios telegrafo-postais, sem assumir com eles quaisquer compromissos, embora disposto, como o afirmou aos mesmos representantes da Imprensa, a usar da benevolência compatível com a dignidade do poder e os superiores interesses do paiz". A terminar, "O Jornal de Estremoz” crescenta: "Em face disto, os telegrafo-postais deverão retomar o trabalho até às 13 horas do dia 30 do corrente"(8).

4. À MARGEM DA GREVE
Em 1920, o Cinema, ainda nos seus primeiros passos, despertava enorme interesse pela sua quase novidade. As sessões de cinema eram mais frequentes que as peças de Teatro levadas à cena e constituíam um espectáculo de agrado popular. Vejamos como a Greve dos Correios teve reflexos negativos entre os cinéfilos de Estremoz. O "Jornal de Estremoz” referindo-se sempre ao Ciné Estremoz diz:
6 de Março - "Deve começar brevemente a exibir-se neste salão a grande e extraordinária fita MASCARA VERMELHA em 32 partes. Esta fita que tem sido corrida em muitos salões, tem feito sucesso pelo seu entrecho, scenario e guarda-roupa".
13 de Março - "Está despertando grande interesse a fita MASCARA VERMELHA, que o emprezario do cinema vai apresentar ao publico brevemente".
20 de Março - "A fita MASCARA VERMELHA, que o emprezario tem contratada e que deveria estar já a exibir-se, só o poderá ser quando haja correio de Lisboa."
Depois de tanta promoção não é de estranhar que os cinéfilos estremocenses, se outros motivos não houvesse, tenham ficado danados com a Greve dos Correios. Finalmente, o mesmo jornal continuando a referir-se ao citado salão de cinema diz:
10 de Abril - "Continua hoje e amanhã, neste salão, a correr-se a fita de grande espectáculo a MASCARA VERMELHA, terceira e quarta serie."
Daqui depreendemos que só em princípios de Abril ficou normalizada a distribuição do correio de Lisboa.
O referido jornal noticiava ainda:
10 de Abril - "Regressou de Lisboa, aonde foi escolher a fita cinematográfica, que deve ser exibida à que actualmente está sendo corrida no Ciné Estremoz, o sr. Pascoal da Graça".
Este senhor deslocou-se a Lisboa para escolher uma fita que sucedesse ao MASCARA VERMELHA, mas anteriormente não o fez para trazer consigo esta última fita, talvez porque esta já estivesse retida devido à Greve dos Correios. Pela mesma razão não deverá ter recorrido aos serviços de estafeta, que de acordo com o número de 6 de Março, do mesmo jornal, ia a Lisboa, domingos e quintas-feiras.
A propósito de ter regressado de Lisboa, o sr. Pascoal da Graça, é de salientar que na época, face à distância a percorrer e aos meios de locomoção à disposição do público, não era muito vulgar viajar até Lisboa, pelo que os dois semanários de Estremoz davam conta em todos os números dos conterrâneos que viajavam até à capital e na maioria das vezes indicavam os motivos dessa viagem.
Não só os cinéfilos estremocenses sentiram os efeitos da Greve dos Correios. Também os "vates” locais deram um ar da sua graça. Vejamos os versos em jeito de "pé quebrado", publicados a 21 de Março desse ano em "O Eco de Estremoz":

"PELA SEMANA
 
Aqui d'el-rei quem m'acode
Tenho em gréve as mioleiras,
Depenado até mais não
Tenho em gréve as algibeiras.

Quiz resolver esta gréve
Esta gréve endiabrada...
Meto a mão na algibeira
E a gréve estava furada.
 
Ficou apenas de pé
E com aspecto guerreiro
A gréve fenemonal
Dos bacharés em carteiro.
 
Na falta d'estes senhores
Dos grévistas os primeiros.
Tem a gente, por mal nosso
De fazer d'alcoviteiros.

Jorge A.Caius"


(1) - Dado à estampa no Catálogo do Salão Filatélico "Ceres", patente ao público na Escola Superior de Educação do Porto, de 28 de Fevereiro a 1 de Março de 1992.
(2) - A Greve teve lugar sobretudo entre 3 e 20 de Março de 1920, mas nalguns locais ultrapassou este período.
(3) - Bilhete-postal "Ceres", de 2 centavos, ocre, impresso em cartolina camurça, nº 61 O.M.
(4) - COPRº E TELº / ESTREMOZ. A marca é do tipo de 1880 e batida a preto. Tem a particularidade do primeiro R de CORRº estar partido, lendo-se COPRº em vez de CORRº. Aquela letra aparece já partida em correspondência datada de 1912.
(5) - Integrada no movimento grevista do funcionalismo público, a Greve dos Correios teve início a 3 de Março e visava lutar contra o aumento do custo de vida.
(6) - A estação telegrafo-postal de Estremoz ficava em 1920 situada no nº 38-1º do Largo da República.
(7) - Estremoz só foi elevada à categoria de cidade pelo decreto 12227 (Diário do Governo nº 192 - 1ª série, de 31 de Agosto de 1926).
(8) - Embora só publicada a 3 de Abril, a notícia foi redigida antes de 30 de Março.

Hernâni Matos
(O presente texto foi publicado como artigo
 “NOVO EPISÓDIO DA GREVE DOS CORREIOS DE 1920”
in Correio do Alentejo, nº 5, Estremoz, Setembro de 1993.)
Publicado inicialmente neste blogue a 24 de Julho de 2012

quarta-feira, 23 de julho de 2025

Assobios de Jorge da Conceição

 

Galinha e pintos.

Prólogo
Os assobios são Bonecos de Estremoz com morfologia muito própria e que pela sua funcionalidade são simultaneamente instrumentos musicais e brinquedos. Sob um ponto de vista morfológico são habitualmente classificados em zoomórficos, antropomórficos e compostos.
Até ao presente, a produção de Jorge da Conceição, a qual é objecto do presente estudo, apenas comporta assobios zoomórficos, mais propriamente galináceos (galos, galinhas e pintos)

Geometria das bases e dimensões das figuras
Base ovóide com cerca de 6 cm de largura e 8,5 cm de comprimento, incluindo o tubo de sopro. Altura variável..

Modelação
Modelação muito minuciosa, rica em pormenores e que valoriza a perfeição. Tubo de sopro adoçado na embocadura.

Assentamento das figuras nas bases
Figuras assentes sensivelmente ao centro da base ovóide, viradas sempre para o lado do tubo de sopro, de modo que a sua parte frontal esteja virada para o assobiador.

Decoração
À semelhança da modelação, a decoração é também pormenorizada. Bases com fundo verde bandeira, pintalgadas com pintas brancas, amarelas, laranja e zarcão, de forma regular, pouco espaçadas e mesmo parcialmente sobrepostas, as quais além de decorarem a base, embelezam o conjunto. Tubo de sopro de cor verde bandeira.

Envernizamento
Utilização de verniz mate.

Epílogo
Os assobios de Jorge da Conceição são caracterizados por uma modelação e uma decoração muito minuciosas, fortemente naturalistas, que os transformam em peças extremamente apelativas. Deste modo, transcendem o âmbito restrito daquilo que podiam ser apenas brinquedos e instrumentos musicais, passando a ser também objectos decorativos, o que está em consonância com a alma do barrista. Jorge da Conceição demanda a beleza, a elegância, o equilíbrio e a harmonia em tudo o que faz.
Obrigado, Mestre!



Galinha no ninho com arco de flores

Galinha no choco

Cesta de ovos

Galo no poleiro alentejano

Galo no arco

Galo no jardim

Galo no roseiral

Galo na vinha

Galo na azinheira

Galo no pinheiro

Galo no poste

Galo

terça-feira, 22 de julho de 2025

No tempo em que não havia “Barbies”






BONECAS DE TRAPO
(Colecção Hernâni Matos)

No tempo em que não havia “Barbies”, as crianças brincavam com bonecas de pano, vulgo “bonecas de trapo”, feitas por uma mulher da Família, aproveitando retalhos de tecidos que tinham sobrado da confecção de peças de vestuário. Havia ainda a possibilidade de aproveitar peças de vestuário que tinham caído em desuso, porque estavam puídas, rotas, rasgadas ou desbotadas.

Com uma tal manufactura, a mulher da Família (mãe, avó, tia ou irmã) dava à criança a quem a boneca era destinada, três grandes lições:

- A primeira era uma lição de economia circular, já que havia o reaproveitamento de tecidos que havia sido abatidos ao serviço, mas que assim continuavam a ter préstimo. A criança ficava assim a perceber a importância do combate ao desperdício;

- A segunda era uma lição de amor, dada pela mulher da Família à criança que a recebia, o que contribuía para o reforço dos laços inter-geracionais;

- A terceira lição era uma lição de pedagogia. já que a dádiva constituía um incentivo ao brincar, actividade insubstituível na formação e socialização da criança.

Nem sempre o passado foi melhor que o presente, mas em muitos casos foi e há contextos que podem ser apontados como exemplos a seguir. É o caso das “bonecas de trapo”, aqui apresentado como paradigma.

 Hernâni Matos 

Publicado inicialmente em 22 de Julho de 2024

segunda-feira, 21 de julho de 2025

"Alentejo" de Júlio Resende

 

 Júlio Resende (1917-2011). Alentejo. Linoleogravura sobre papel.
Prova Única. 24 x 24 cm. Assinada e datada de 1950. 
Colecção Hernâni Matos.


Primeira versão de "Alentejo"
A presente prova única de linoleogravura, intitulada “Alentejo”, assinada e datada de 1950, a lápis, representa dois alentejanos de chapéu e capote, montados em cavalos e outros dois apeados, um em pé e outro dobrado, juntos a outro cavalo. O grupo encontra-se à frente de casario e são visíveis árvores na linha do horizonte. A linoleogravura foi produzida no último ano de permanência do pintor no Alentejo, onde viveu e foi professor nos anos de 1949-50 na Escola de Cerâmica de Viana do Alentejo. Foi o período em que privou com o escritor Vergílio Ferreira e com o pintor António Charrua. A linoleogravura pertenceu à colecção do livreiro portuense Fernando Fernandes (1934-2018), que em 1953 integrou o MUD juvenil e em 1958 fundou a Livraria-Galeria Divulgação que uma década depois, se transformou na Livraria Leitura, um espaço de cultura de excelência, tanto no campo das letras como das artes. Aquisição através de leiloeira.

Versões posteriores de "Alentejo"
Em 1961, quando do VII Aniversário do Cine Clube de Estremoz, Júlio Resende produziu a versão 1961 da composição ”Alentejo” de 1950, de que resultou a linoleogravura da capa do programa de aniversário e com o formato dele (18 x 16,5 cm). A assinatura e a data são agora serigráficas.
É conhecida também a versão 2006 da composição “Alentejo” sob a forma de desenho a carvão (170 x 170 cm), com assinatura e data também a carvão. Integrou a exposição “Resende - ALENTEJO”, a qual teve lugar em 2017 no Palácio dos Marqueses da Praia e Monforte, em Estremoz. 
EM 2021 foi vendido pela leiloeira Palácio do Correio Velho, em Lisboa, um quadro a óleo sobre tela (164 x 170 cm) de Júlio Resende, intitulado "Figuras de Viana do Alentejo", assinado e datado de 1951, pertencente à Colecção Professor Doutor António Ferraz Júnior e Dr. José Manuel Ferraz. Este quadro tem uma composição análoga à da linoleogravura e vem reproduzido no livro de Júlio Resende: “Júlio Resende - A Arte como / vida". Editora Civilização. Porto, 1989, pág. 50.

Júlio Resende (1917-2011)
Júlio Resende nasceu no Porto em 1917. É autor de uma obra de pintura vastíssima, desenvolvida entre os anos 30 do século XX e a primeira década do século XXI. Concluiu a formação em Pintura, no ano de 1945, na Escola de Belas Artes do Porto, onde seria docente entre 1958 e 1987.
Realizou inúmeras exposições no país e no estrangeiro, tendo iniciado, em 1934, a participação em exposições colectivas, e um trajecto individual em 1943. Ao longo da sua carreira, foi distinguido com relevantes prémios. Realizou obra pública com trabalhos em técnicas que vão da cerâmica ao fresco, do vitral à tapeçaria, instalados em espaços do norte ao sul de Portugal. Ilustrou obras literárias, nomeadamente para a infância, realizou cenários e figurinos para teatro, bailado e espectáculos de grande impacto.
Sobre a sua produção debruçaram-se os principais críticos e historiadores de arte portugueses, mas também importantes escritores e poetas.
Em 1947 instala-se em Paris. Viajou por França, Bélgica, Holanda, Inglaterra e Itália, onde interactuou com inúmeros artistas Nos anos de 1949 / 50 foi professor na Escola de Cerâmica de Viana do Alentejo, período em que privou com o escritor Vergílio Ferreira e com os artistas Júlio e Charrua. Nos anos 50 promoveu, em Portugal, as Missões Internacionais de Arte, para as quais eram convidados artistas estrangeiros em diálogo com artistas portugueses. Em 1954 lecciona na Escola Secundária da Póvoa de Varzim e em 1955 promove a segunda “Missão Internacional de Arte”, naquela localidade. Em 1970 seria responsável pela orientação visual e estética do Espectáculo de Portugal na “Exposição Mundial de Osaka”, momento relevante da sua presença no estrangeiro.
A criação do Lugar do Desenho - Fundação Júlio Resende foi um dos principais projectos a que se dedicou a partir da década final do século XX. Dedica-se à preservação e à divulgação do acervo de desenhos de Júlio Resende, que é composto por mais de duas mil e quinhentas obras que o Pintor reuniu ao longo da sua carreira.

domingo, 20 de julho de 2025

Primaveras só com flores

 


CRÉDITOS FOTOGRÁFICOS
Ver no final.

Primaveras
Na barrística popular estremocense existem exemplares cuja origem remonta aos sécs. XVIII/ XIX e das quais a designação consagrada pelo uso é a de “Primaveras”. Trata-se de uma designação genérica que abrange as chamadas “Primaveras de Arco”, as “Primaveras de Plumas”, as "Primaveras de toucado" e as “Bailadeiras”.
As “Primaveras”, para além de constituírem uma alegoria à estação do mesmo nome, são também figuras de Entrudo e registos dos primitivos rituais vegetalistas de celebração e exaltação do desabrochar da natureza.

Flores como elo comum entre Primaveras
Existe um elo comum entre as várias tipologias de “Primavera”, que é a presença de flores em arcos, vestidos, bouquets ou cornucópias. Significa isto que as flores são elementos imprescindíveis cuja presença é indispensável na representação de figuras da barrística popular estremocense, as quais se convencionou designar por “Primaveras”.

Não há Primaveras sem flores
É absurdo criar uma figura desprovida de flores e chamar-lhe “Primavera”. Seria como procurar fazer uma omelete sem ovos.
No caso particular das “Primaveras com arco” há que resistir à tentação de substituir flores por corações, estrelinhas, patos, galinhas ou outra coisa qualquer. Porém, se tal acontecer, estaremos em presença de uma figura que poderá receber a designação que o seu criador entender, mas “Primavera” é que nunca, uma vez que o arco está desprovido de flores.

Inovação e terminologia designatória
A inovação na barrística popular estremocense é possível e mesmo desejável, mas sempre temperada com bom senso e bom gosto naquilo que é feito. Para além disso, há que ter o cuidado de usar a terminologia adequada na designação das figuras que foram criadas.


CRÉDITOS FOTOGRÁFICOS
As imagens aqui reproduzidas são de exemplares de “Primaveras” de Oficinas de Estremoz do séc. XIX, pertencentes à Colecção Júlio dos Reis Pereira, propriedade do Museu Municipal de Estremoz. Imagens recolhidas com a devida vénia na página web do Centro Interpretativo do Boneco de Estremoz.







sábado, 19 de julho de 2025

Cipriano Dourado e a apanha da azeitona

 

Rabisco. Litografia sobre papel 6/20. 42 x 35,5 cm. 1956.


Conjuntamente com a terra, a mulher é o tema dominante na obra de Cipriano Dourado (1921-1981), tanto no desenho, como na gravura ou na pintura. Nos seus trabalhos e independentemente da adversidade do contexto, sobressai sempre o encanto da feminilidade, resultado da delicadeza do seu traço.
No núcleo neo-realista do meu acervo pessoal de artes plásticas, tenho duas obras onde o artista aborda a apanha da azeitona.

Rabisco. Litografia sobre papel 6/20. 42 x 35,5 cm. 1956.
A litografia representa uma mulher do povo, de cabeça coberta por um lenço, com avental de trabalho e descalça, o que indicia a sua condição de pobreza. Encontra-se junto a uma oliveira, dobrada sobre si própria e apanha azeitona caída da árvore. No tempo do fascismo havia quem por necessidade tivesse que “andar ao rabisco”, isto é, ir à apanha da azeitona caída no chão, uma vez que tivesse terminado a safra. Era uma actividade de subsistência e último recurso, praticada por quem vivia miseravelmente. Nalgumas regiões era uma prática consentida pelos proprietários dos olivais, noutras não. Neste último caso, não era raro ver desgraçados entrar numa vila ou aldeia qualquer, à frente da guarda a cavalo. Como não tinham com que pagar a coima prevista, iam descansar as costas na prisão.
A litografia participou na I Exposição de Artes Plásticas da Fundação Calouste Gulbenkian, a qual ocorreu entre 7 e 31 de Dezembro de 1957 nas salas de exposição da Sociedade Nacional de Belas-Artes em Lisboa. A tiragem da litografia foi de 20 exemplares e era vendida no local ao preço de 200$00 cada exemplar. Não foi editada pela GRAVURA, fundada no ano anterior, cujas tiragens eram na época de 100 exemplares e da qual Cipriano Dourado foi sócio fundador. Esta litografia fez parte da colecção do Eng. Frederico Marechal Spargo Pinheiro Chagas. Aquisição através de leiloeira.

Camponesa. Litografia sobre papel – prova de ensaio. 
45 x 33 cm. 1957.

Camponesa. Litografia sobre papel – prova de ensaio. 45 x 33 cm. 1957.
A litografia representa uma camponesa alentejana a colher azeitona de uma oliveira, a qual deposita no avental arregaçado. A cabeça encontra-se bem protegida por um lenço e as saias foram apanhadas em forma de calças, tal como usavam as ceifeiras. Aquisição feita a um antiquário. Litografia editada pela GRAVURA numa tiragem normal de 100 exemplares.

Cipriano Dourado (1921-1981)
Cipriano Dourado nasceu em 8 de Fevereiro de 1921 em Penhascoso (Mação). Em Lisboa, após frequentar a Escola Industrial Marquês de Pombal, inicia o seu percurso artístico como autodidacta. Com 14 anos, começou a trabalhar como desenhador-litógrafo e a perícia adquirida faz com que nas suas mãos, a litografia passe a ser gravura como arte maior.
O seu talento e vocação para as artes plásticas levaram-no a frequentar em 1939 a Sociedade Nacional de Belas Artes em Lisboa, como aluno do curso nocturno, iniciando a sua participação nas exposições com trabalhos a aguarela, pois a gravura não tinha ainda entrada em exposições oficiais. Nos Salões de Inverno da SNBA, onde a aguarela e o desenho tinham acesso, Cipriano Dourado participou em 1947, com trabalhos de aguarela que obtiveram o 2º prémio Roque Gameiro e uma menção honrosa.
Entre 1949 e 1956 participou nas Exposições Gerais de Artes Plásticas, na qualidade de desenhador, pintor e gravador. Em 1953, participou no “Ciclo do arroz” e em 1956 foi um dos sócios fundadores da Gravura – Sociedade Cooperativa de Gravadores Portugueses. Como ilustrador colaborou em publicações como Seara Nova, Vértice, Colóquio-Letras e ilustrou livros de Orlando Gonçalves, Armindo Rodrigues, Mário Braga, Augusto Gil e Antunes da Silva, entre outros.
Participou em inúmeras exposições, tanto em Portugal como no estrangeiro. Encontra-se representado em museus como: Museu Nacional de Arte Contemporânea (Lisboa), Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian (Lisboa), Museu do Neo-Realismo (Vila Franca de Xira) e outros, bem como em inúmeras colecções públicas e privadas.