quarta-feira, 24 de dezembro de 2025

Noite de Natal

 
Preparação da consoada. Ilustração de Raquel Roque Gameiro Ottolini (1889-1970),
para bilhete-postal emitido pelos CTT.

Nos anos 50-60 do século passado, eu e os meus pais passávamos normalmente a noite da missadura em casa da minha tia Estrela, no nº 17, do Largo do Espírito Santo, em Estremoz. Fazíamos o lume de chão para nos aquecermos e para grelharmos a chouriça, o lombinho e o toucinho das sete carnes. O pingo que escorria das missaduras era cuidadosamente aparado com nacos de pão. Até dava para nos lambermos a comer pão assim.
Por cima das nossas cabeças, o fumeiro – espécie de enfermaria para os enchidos – onde luzidias e gulosas chouriças, morcelas e farinheiras ficavam a curar, aguardando a sua vez da gente se poder repimpar com elas.
Ti Manel Alturas, o meu avô materno, tocava ronca e com a sua voz esganiçada, cantava:

"Olha o Deus Menino
Nas palhas deitado,
A comer toicinho
Todo besuntado!"

A mesa estava posta para o ritual da comezaina da noite. Pão caseiro, fruta da época, arroz doce e bolos que as mulheres atarefadas preparavam durante todo o dia. Ele era a boleima, o bolo podre, o bolo de laranja, as filhoses, as azevias as argolinhas que os mais crescidos empurravam com vinho doce ou com vinho abafado, depois de termos despachado a chouriça, o toucinho e os lombinhos. Tudo acompanhado com brócolos ou couve-flor e regado com vinho da adega do Zé da Glória. E sabem o que vos digo? Não me lembro de alguma vez ter ouvido falar em colesterol.
Na lareira, crepitava o madeiro de Natal. Eu passava a noite a brincar ao pé do lume, a ouvir falar e cantar os mais velhos. Só saía dali cerca da meia noite quando me mandavam para a rua, ver o Pai Natal entrar pela chaminé. Durante muitos anos não consegui perceber a razão exacta pela qual, o bom do Pai Natal entrava precisamente na altura em que eu saía. Depois de ter percebido isto, os presentes minguaram a olhos vistos. Para vos falar disto é por que sei qual a diferença exacta que há entre os dois natais.

Publicado inicialmente a 5 de Janeiro de 2012

Texto adaptado do texto anterior "Memórias do Espírito Santo"

Carta ao Menino Jesus. Ilustração de Laura Costa (activa 1920-1950),
para bilhete-postal emitido pelos CTT em 1942.

Cântico do Natal. Ilustração de Laura Costa (activa 1920-1950),
para bilhete-postal emitido pelos CTT em 1942.

 
As Prendas do Menino Jesus. Ilustração de Raquel Roque Gameiro Ottolini (1889-1970),
para bilhete-postal emitido pelos CTT em 1943.

terça-feira, 23 de dezembro de 2025

Auto de Natal

 

Personagens (da esquerda para a direita) e de cima para baixo:
Dona Victória Augusta, Maurício, Aurora, Frei António, Catarina, Flora, Amora
 e Pandora. Falta aqui o autor do auto, que também é personagem do mesmo.


À Boniqueira Joana Santos,
criadora dos personagens deste auto,
à excepção de um que lhe é pré-existente
e para que conste, sou eu.

Prólogo
O enredo desenrola-se numa casa da baixa citadina de Estremoz. Ocorre na actualidade, em situação de pandemia. Os personagens remontam a tempos que já lá vão. Nasceram das mãos da Boniqueira Joana Santos, que os pôs à guarda do dono casa, que por isso também é personagem. O perfil de todos os intervenientes é descrito como segue.
Personagens
- D. AUGUSTA VITÓRIA (Dama): Senhora com pelo na venta e ligações remotas ao costado dos Braganças. Exige ser tratada de acordo com o estatuto social que considera ser o seu. Veste à moda do Antigo Regime e a roupa que usa vem toda de Paris. Gosta de andar de sombrinha, para o que der e vier. Está alojada no salão no topo de um móvel alto, como convém à sua augusta pessoa.  
- MAURÍCIO (Peralta): Cavalheiro charmoso, elegantemente vestido, de cabelo e bigode cor de cinza, marcas da patina do tempo. Os olhos grandes e profundos, atestam que é um homem com experiência de vida. O chapéu às três pancadas indicia que é um “bom vivant”. É um eterno apaixonado. Ama Aurora, a luz dos seus olhos. Ocupa um lugar de eleição: uma das prateleiras de uma estante colocada num local discreto e reservado da sala de estar.
- AURORA (Senhora de pezinhos): Mulher sensível, bela e elegante. Aperalta-se primorosamente para agradar a Maurício. Está sempre onde Maurício se encontra.
- FREI ANTÓNIO (Santo António): Franciscano, enverga o hábito simples consignado pela Ordem. Milagreiro, dado a leituras e sermões. Vive retirado no oratório do quarto do dono da casa, consciente das suas responsabilidades de Santo Protector.
- CATARINA (Ceifeira): Alentejana com memória de muitas lutas e esperança nos amanhãs que hão de vir. Permanece no último andar da casa, assente num pedestal, junto a uma janela. Com o seu olhar de moura encantada, ávida das claridades do Sul, está sempre atenta e perscruta o horizonte da charneca, à espera que chamem por si.
- FLORA (Primavera): Figura transbordante de alegria e calor humano, que personifica a harmonia associada à renovação da natureza. Está num nicho da sala de entrada, pronta a dar as boas vindas a quem vier por bem.
- AMORA (O Amor é Cego): Figura da qual irradia calor, paixão e disponibilidade para o amor carnal e doce. Encontre-se na sala de entrada, no mesmo nicho onde está Flora.
- PANDORA (Primavera de toucado): Figura da qual resplandece fertilidade, abundância, riqueza e prosperidade. Permanece na sala de entrada, no mesmo nicho onde estão Flora e Amora.
- ANTÓNIO ALTURAS (Pessoa que eu cá sei): Coleccionador e investigador coca-bichinhos de tudo o que tem a ver com a identidade cultural alentejana. Tem à sua guarda, várias criações da Boniqueira Joana Santos, o que não é tarefa fácil, já que todas têm alma e vida, paixão, ideais, convicções e credos, que por vezes as fazem entrar em conflito umas com as outras. Serve-se então das suas capacidade de negociador nato, as quais lhe permitem sanar conflitos. De resto e por precaução (Homem prevenido vale por dois), alojou-os lá em casa, distribuindo-os por várias divisões, tendo em conta as afinidades e as dissemelhanças entre eles.
Acção
Tudo começa quando António Alturas chega a casa. Na sala de entrada é recebido por Flora, Amora e Pandora, que lhe dirigem uma saudação, praticamente em uníssono:
- Seja bem-vindo António Alturas!
Ao que ele replica:
- Como é que estão Suas Graças?
E elas respondem:
- Estamos algo preocupadas. Frei António não pára de arengar. Ouve-se aqui tudo como se estivesse-mos ao pé do oratório. E o que é aborrecido é que ele repete sempre o que está a dizer.
A resposta não se faz tardar:
- Fiquem descansadas que eu já vou ver o que se passa.
E dito isto dirige-se para o quarto contíguo onde se encontra o oratório com Frei António. Aí, dá com o frade, de má catadura e cara de poucos amigos, pelo que lhe pergunta:
- O que é que se passa Frei António?
O frade põe logo tudo em pratos limpos:
- Meu caro António Alturas: Estou farto de reclusão e aproxima-se o Natal. Quero ir à Missa do Galo e depois cear com os meus irmãos argilosos que estão espalhados pelas divisões desta casa.
António pergunta-lhe então:
- E Frei António já sabe se eles querem cear consigo? E ir mesmo à Missa do Galo?
A resposta vem de rompante:
- Então não hão de querer? Era o que faltava não quererem…
António toma então uma decisão rápida:
- Pois fique sabendo, Frei António, que não há Missa do Galo para ninguém e não pode haver ceia conjunta cá em casa. Cada um come onde está e fica o assunto resolvido.
O frade não desarma e pergunta:
- Mas porquê? Dê-me uma razão forte, homem de Deus.
A resposta não demora:
- Ouça Frei António: São ordens do outro António, o Costa, que também é de gancho. É tudo por causa da pandemia. A Missa do Galo fica para o ano que vem, que o Galo não se importa. Quanto à ceia, cada um come onde está. D. Augusta Vitória, Frei António e Catarina têm de cear sozinhos. Aurora ceia com Maurício e, por fim, Flora ceia com Amora e com Pandora. São ordens para se cumprir!
Mas o frade não está pelos ajustes e replica:
- Cá em casa não há liberdade religiosa nem de circulação.
O anfitrião atira-lhe então com esta:
- Ah, ele é isso? Pois fique sabendo Frei António que se me continua a azucrinar, vou falar com o Superior da Ordem. Vou-lhe contar que de vez em quando dá umas escapadelas do oratório, para ir à procura de moças com bilhas partidas.
Foi remédio santo. O frade ficou manso que nem um cordeiro. As suas últimas palavras foram:                                                                         
- Pronto, meu caro António Alturas, não se fala mais no assunto.
Com o problema do frade resolvido, António Alturas foi dar conta das determinações aos outros membros da comunidade argilosa, um a um, ouvindo então as suas respostas. Primeiro foi D. Augusta Vitória que declarou:
- Ir à Missa do Galo com este tempo? Que horror, só de pensar nisso, fico com arrepios de frio. Quanto a ceias separadas, acho mesmo muito bem. Pode contar com a minha inteira colaboração. Não gosto nada de misturas. Mais vale prevenir que remediar.
Seguidamente foram Maurício e Aurora, falando o primeiro em nome de ambos:
- Nós vivemos um para o outro e sentimo-nos bem aqui no nosso cantinho. Missa do Galo e ceia conjunta? Não, obrigado!
Depois foram Flora, Amora e Pandora, falando a última em nome de todas:
- A nossa vida é o Carnaval que está à porta. Não queremos correr riscos. Por isso, dispensamos a Missa do Galo e a ceia conjunta. Pode contar com a nossa colaboração incondicional.                      
Por fim, foi Catarina:
- Eu à Missa do Galo não ia, que não sou dessas coisas. Mas agora, não haver ceia colectiva, acho mal. Não tem jeito nenhum a gente cear sozinhos. A gente juntos tem mais força.
António vê-se então obrigado a recorrer a argumentos mais fortes:
- A Catarina não se importa de poder vir a prejudicar companheiros? Onde é que está a sua consciência de classe?
Ao ver-se confronta com este argumento inescapável, a atitude de Catarina suaviza-se e ela acaba por ceder:
- Tem razão companheiro. Eu já sofri muito e por isso estou disposta a sofrer ainda mais se for preciso, para ajudar a construir um Mundo Novo.
Levanta então a foice no ar e grita a plenos pulmões:
- Avante, camaradas!
CAI O PANO
 
Publicado inicialmente a 23 de Dezembro de 2020

Dama (2020). Joana Santos (1978-  ).
 
Peralta (2020). Joana Santos (1978-  ).
 
Senhora de pézinhos (2020). Joana Santos (1978-  ). 

Santo António - Gancho de meia (2020). Joana Santos (1978-  ).
 
Ceifeira (2020). Joana Santos (1978-  ). 

Primavera (2020). Joana Santos (1978-  ). 

Amor é cego (2020). Joana Santos (1978-  ). 

Primavera de toucado (2020). Joana Santos (1978-  ). 

domingo, 21 de dezembro de 2025

Contributo para uma Simbólica das Figuras de Presépio


Fig. 1 - Berço das pombinhas (1983). Liberdade da Conceição (1913-1990).
Colecção Jorge da Conceição.

Referências bíblicas
O Presépio é um dos grandes símbolos religiosos que retrata o Natal e o nascimento de Jesus. Etimologicamente, a palavra “Presépio” provém do latim “Praesepium”, que genericamente significa curral, estábulo, lugar onde se recolhe gado e que, numa outra óptica, designa qualquer representação do nascimento de Cristo, de acordo com os Evangelhos (LUCAS 2: 1 a 18) e (MATEUS 2: 1 a 11). Deles destaco a Anunciação do Anjo do Senhor aos pastores: “Isto vos servirá de sinal: achareis um recém-nascido envolto em faixas e posto numa manjedoura.” (LUCAS 2: 12), bem como “Foram com grande pressa e acharam Maria e José, e o Menino deitado na manjedoura.” (LUCAS 2: 16).
Um elemento chave dos Presépios tradicionais de Estremoz é o chamado “Berço do Menino Jesus”, cuja simbólica me proponho aqui analisar em dois casos concretos.

Simbólica do Berço das pombinhas
O “Berço das pombinhas” (Fig. 1) é revelador da modificação introduzida pelos barristas de Estremoz no contexto do nascimento de Jesus. Nele, a manjedoura de Belém transfigurou-se em berço com espaldar à maneira das camas senhoriais, já que para os cristãos, Jesus Cristo é Rei e Senhor do Universo. O berço é decorado com recurso ao azul do Ultramar e ao ocre amarelo. Trata-se de cores garridas associadas às claridades do Sul e utilizadas no embelezamento das habitações populares desta terra transtagana.
Na simbologia judaico-cristã, a pomba é um símbolo de pureza e de simplicidade, bem como daquilo que de imorredouro existe no Homem, o princípio vital, a Alma. As quatro pombas brancas poderão ser uma representação alegórica dos quatro evangelistas (Mateus, Marcos, Lucas e João), que narraram a vida e a doutrina de Jesus Cristo como um Evangelho, visando preservar os seus ensinamentos ou revelar aspectos da natureza de Deus.
O simbolismo do galo está associado aos cultos solares da antiguidade, nos quais o Sol era venerado como divindade. De acordo com a tradição do culto mitraísta, o galo cantou no momento do nascimento de Mitra, o deus do Sol, da sabedoria e da guerra na Mitologia Persa. O mito viria a ser recuperado pela Religião Cristã, estando na origem da Missa do Galo, celebrada na passagem de 24 para 25 de Dezembro, assinalando o nascimento de Jesus. Não há confirmação histórica de que Jesus tenha nascido na data em que se comemorava o nascimento de Mitra. Todavia, ela foi adoptada pelo Cristianismo, visando fundir os dois cultos, uma vez que o culto a Mitra estava enraizado entre os romanos. A data corresponde também no Hemisfério Norte ao início do Solstício de Inverno, no qual os mitraístas celebravam o seu culto. O Cristianismo adoptou o galo como símbolo do arauto anunciador de boas novas, uma vez que o nascimento de Jesus correspondia ao despontar de uma nova luz para o mundo. Segundo a lenda, a única vez que o galo cantou foi à meia-noite, anunciando o nascimento de Jesus.
De acordo com a Mitologia Popular Portuguesa: - "O galo quando canta diz: - “Jesus é Cristo”; - "O canto do galo à meia-noite faz dispersar a assembleia do Diabo e das Bruxas"; - "É mau agouro um galo cantar antes da meia-noite". Para o Adagiário Português: - “Galo que fora de horas canta / Cutelo na garganta”; - "O galo preto espanta as coisas ruins"; - “Galo branco não dá manhã certa”.
A figura do Menino Jesus está deitada sobre o seu lado direito. O braço esquerdo apoia-se no peito. Trata-se possivelmente de uma alegoria ao “Sagrado Coração de Jesus”. Recorde-se que no antigo Egipto, a mão colocada sobre o peito, indicava a atitude do sábio, que no caso de Jesus é Sabedoria Divina. Já a mão direita no pescoço assinalava a posição do sacrifício, aqui uma possível alegoria ao sacrifício de Jesus na cruz.

Fig. 2 - Berço dos anjinhos (2017). Ricardo Fonseca (1986 - ).
Colecção Hernâni Matos.

Simbólica do Berço dos anjinhos
À semelhança do “Berço das pombinhas” (Fig. 1), também o ”Berço dos anjinhos” (Fig. 2) é revelador da modificação introduzida pelos barristas de Estremoz no contexto do nascimento de Jesus. É igualmente decorado com recurso ao azul do Ultramar e ao ocre amarelo.
O simbolismo do galo é análogo ao do “Berço das pombinhas”. O galo está ladeado de dois anjinhos, mensageiros de Deus junto dos homens. Ostentam asas numa alusão clara à sua capacidade de ascensão ao Céu. São em número de dois, já que Jesus Cristo manifesta dois aspectos: o Divino e o humano. Tocam trombeta, instrumento musical usado para anunciar os grandes acontecimentos históricos e cósmicos. As trombetas associam aqui o Céu e a Terra numa celebração única: o nascimento de Jesus Cristo.
O espaldar do berço está enfeitado com um laço dourado. Na antiga Grécia existia o costume de atar as imagens dos Deuses com um laço, para que não abandonassem o local e o povo. No antigo Egipto, o laço simbolizava a eternidade, pela união entre os deuses e os homens, o Céu e a Terra. Por outras palavras, o laço pode ser encarado como um supremo privilégio de domínio dos deuses. No Cristianismo, os laços das vestimentas representam os três votos: a obediência, a pobreza e a castidade. Modernamente, o laço dourado é símbolo de promoção do valor da amamentação para a sociedade. A cor dourada simboliza a amamentação como padrão ouro para a alimentação infantil. Uma parte do laço representa a mãe e a restante representa a criança. O laço é simétrico, o que significa que a mãe e a criança são ambos vitais para o sucesso da amamentação. Sem o nó não haveria laço, pelo que o nó representa o pai, a família e a sociedade, sem os quais a amamentação não teria êxito. O laço encontra-se ladeado de folhas de sobreiro com bolotas, numa alegoria ao Alentejo.
O berço encontra-se marginado por arcos sensivelmente ogivais, parcialmente encobertos por ramos de palma, verdes. Os ramos de palma simbolizam o martírio de Jesus, uma vez que a palma é considerada um atributo dos mártires, que na arte cristã ocidental são representados empunhando um ramo de palma. Esta, desde a época pré-cristã que é considerada como um símbolo de vitória e de ascensão, pelo que os heróis eram saudados com ramos de palma ao retornarem vitoriosos das batalhas. Os romanos usaram os ramos de palma como símbolo de vitória contra os judeus. Estes viriam a reagir, pelo que de acordo com os quatro evangelhos canónicos, Jesus foi recebido festivamente com ramos de palma na sua entrada triunfal em Jerusalém. Por isso a palma veio a ser adoptada pelos primeiros cristãos como símbolo da vitória dos fiéis sobre os inimigos da alma e é ainda encarada pelos cristãos como símbolo da vitória na guerra travada pelo espírito contra a carne. Daí que no Domingo de Ramos, os fiéis transportem ramos de palma abençoados pelo sacerdote no início da Procissão de Ramos. Pelo facto de se manter sempre verde, a palma encerra em si um simbolismo associado à Ressurreição e Imortalidade de Cristo após o drama do Calvário.
Entre os arcos ogivais, 4 corolas de gerbera que simbolizam a pureza e a inocência das crianças e aqui do Menino Jesus. Da esquerda para a direita e em sequência espectral, as cores e o respectivo simbolismo são sucessivamente: violeta (espiritualidade, mistério e misticismo), azul (nobreza, harmonia e serenidade), laranja (alegria e vitalidade) e vermelho (paixão e amor). As corolas são em número de 4, já que para Pitágoras o número 4 era perfeito, pelo que foi o número utilizado para fazer referência ao nome de Deus. Aquele número está também ligado ao simbolismo da cruz e ao número de evangelistas que descreveram a vida de Jesus.
A figura do Menino Jesus está deitada de costas em cima das palhinhas e com o braço esquerdo apoiado no peito, o que tem interpretação análoga à do “Presépio das pombinhas”. O braço direito encontra-se esticado ao longo do corpo, com a palma da mão aberta, o que significa que não tem nada a esconder. Trata-se da mão direita, a mão que abençoa. A palma está virada para o Céu, simbolizando pacificação e dissipação de todo o medo.

Hernâni Matos
Publicado inicialmente em 21 de Dezembro de 2023
Publicado no jornal E, n.º 324, de 21 de Dezembro de 2023

sábado, 20 de dezembro de 2025

Começou o Inverno


COSTUMES ALENTEJANOS (1923) – Aguarela sobre cartão (37 cm x 26, 5 cm).
Jaime Martins Barata (1899-1970). Museu Grão Vasco, Viseu.

No hemisfério norte, o Inverno tem início com o solstício de Inverno, que acontece cerca do dia de 21 de Dezembro e termina com o equinócio de Primavera, que ocorre perto de 20 de Março.
O solstício de Inverno corresponde ao menor dia do ano, a partir do qual os dias começam a crescer. Nas religiões pagãs simbolizava o início da vitória da luz sobre a escuridão e era comemorado como tal. Com o cristianismo essas celebrações foram incluídas no culto do Natal. 
O Inverno é a estação do ano que estabelece a transição do Outono para a Primavera. É caracterizada por chuva, neve, nevoeiro e temperaturas muito baixas. Como consequência destas e da falta de alimentos, há animais que hibernam. Caso dos ursos, musaranhos, ouriços, esquilos, marmotas e morcegos. A hibernação é caracterizada por um estado de sonolência e inactividade, em que as funções vitais do organismo são reduzidas ao estritamente necessário à sobrevivência. Ocorre então uma redução da actividade metabólica, a respiração quase que pára e o número de batimentos cardíacos abranda.
As temperaturas baixas e a escassez de alimentos no Inverno estão também na origem de migrações. Estas ocorrem quando os seres vivos se deslocam de uma região para outra, à procura de melhores condições de vida, em termos de temperatura e de alimentação. É o que se passa com aves, caribús, baleias, borboletas, vespas, gafanhotos e roedores.

 Publicado inicialmente a 20 de Dezembro de 2012

sexta-feira, 19 de dezembro de 2025

"O Amor é cego" com a "Sagrada Família" no coração

 

"O Amor é cego" com a "Sagrada Família" no coração (2020). Isabel Pires (1955 -  ).

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Uma figura composta

Tive recentemente conhecimento de uma interessante figura da Barrística Popular de Estremoz, criada por Isabel Catarrilhas Pires em 2020. Trata-se de uma figura composta por outras duas figuras.
Um dessas figuras é “O Amor Cego”, Boneco de Estremoz cuja origem remonta ao séc. XIX e é considerado uma figura de Carnaval. Trata-se de uma alegoria à cegueira do amor, expressa através do Cupido de olhos vendados. É representado como uma figura feminina, alada e de olhos tapados. Enverga um vestido rodado e vistoso, de cores garridas e decorado com motivos florais. Na cabeça usa um turbante que pompeia superiormente quatro plumas tricolores e ostenta frontalmente um coração - símbolo do amor. Calça botas apetrechadas com cordões entrelaçados. Na mão esquerda empunha um ramo de flores, enquanto que a mão direita segura um coração trespassado por dua setas e mostrado em corte. A figura assenta numa base circular, de cor verde, orlada de motivos florais no topo.
A outra figura, ela própria uma figura composta é um “Presépio de 3 figuras” ou “Sagrada Família”, envergando trajes bíblicos de fantasia. Está alojada no interior do coração de “O Amor é Cego”, mostrado em corte.

Da Natividade à Quaresma
Estamos em presença de uma figura composta tematicamente bivalente, uma vez que é simultaneamente um Presépio e uma figura de Carnaval.
O Presépio é um dos grandes símbolos religiosos, que retrata o Natal, festividade cristã que enaltece o nascimento de Jesus Cristo.
O Carnaval é o período de 3 dias, caracterizado por alegres festas populares que precedem o período da Quaresma, o qual antecede o domingo de Páscoa. Durante a Quaresma, a Igreja convida os fiéis a um período de penitência e de meditação, através da prática do jejum, da esmola e da oração, como preparação para o Domingo de Páscoa, durante o qual se comemora a Ressurreição de Jesus Cristo.
A figura composta objecto do presente estudo, sintetiza a vida de Jesus Cristo, recorrendo a figuras que integram há muito a Barrística Popular de Estremoz.
 
Cromatismo da composição
A cor dominante é o ocre amarelo, cor da terra onde decorreu a vida de Jesus. Segue-se o azul do céu para o qual, segundo o cristianismo, decorreu a Ascensão de Jesus, quarenta dias após a Ressurreição. Depois vem o vermelho, simbolizando o sangue derramado por Jesus e finalmente o verde, prenunciando a esperança da vida eterna.
De salientar ainda que o negro da venda de ”O amor é cego” simboliza a escuridão,  a tristeza e a dor da morte de Jesus.

A análise
A figura aqui dissecada é a meu ver daquelas que encerram em si uma mudança de paradigma, com a Barrística Popular de Estremoz a ascender a um patamar superior aquele que é habitual.
Trata-se da magistral criação de uma barrista com um estilo acentuamente personalizado, assente numa profunda interpretação naturalista e num cromatismo muito vivo, que tornam apelativas as figuras que fruto dum pulsar de alma lhe brotam à flor das mãos. Como tal, a barrista é merecedora dos meus melhores encómios, os quais aqui registo para que conste agora e para memória futura.

Hernâni Matos
Publicado inicialmente em 6 de Abril de 2021

quinta-feira, 18 de dezembro de 2025

Uma jóia da História Postal de Estremoz


 
Fig. 1

Fig. 2


Prólogo
Há documentos cuja interpretação permite ao investigador catalogá-los na classe das “jóias”. Uma tal inclusão pode ser devida ao teor do seu conteúdo escrito, bem como ao contexto em que este foi produzido, assim como ao grafismo do próprio documento. Pode até acontecer que estas três situações coexistam, o que potencia o valor e o interesse do documento. Vamos ver que é o que se passa com um bilhete-postal ilustrado, pertencente ao meu arquivo de História Postal de Estremoz.

Descrição do bilhete-postal ilustrado
Trata- se de um inteiro postal, mais propriamente um bilhete-postal de Boas Festas do tipo “Tudo Pela Nação,” com selo impresso da taxa de $30 (30 centavos), destinado ao Serviço Nacional, obliterado com a marca do dia da estação dos CTT, do tipo de 1928, do dia 24 de Dezembro de 1942.  O bilhete-postal tem como motivo os Bonecos de Estremoz. A ilustração é de Laura Costa (activa 1920-1950), e o bilhete-postal foi emitido pelos CTT em 1942.
Na parte superior do rosto do bilhete-postal (Fig. 2), a ilustração é constituída por um tradicional “Berço do Menino Jesus” da barrística popular estremocense, o qual se encontra ladeado por dois ramos de azevinho.
No verso do bilhete-postal (Fig. 1) a ilustração representa uma cena no areal da praia da Nazaré e envolve um casal com os seus trajes tradicionais, acompanhados de duas crianças. Aparentam estar a montar no areal a “Adoração dos Reis Magos”, Presépio de 6 figuras, constituído pela Sagrada Família e pelos 3 Reis Magos.
O bilhete-postal ilustrado foi expedido em 24 de Dezembro de 1942 (véspera do Dia de Natal) por Sá Lemos, dirigido ao Dr. Marques Crespo, em Estremoz.

Sá Lemos, o expedidor do bilhete-postal
José Maria de Sá Lemos (1892-1971), escultor, discípulo de Mestre António Teixeira Lopes (1866-1942), começou a trabalhar como professor e simultaneamente Director da Escola Industrial António Augusto Gonçalves, em 21 de Abril de 1932, data da sua tomada de posse, com base no Decreto de 15 de Março de 1932 publicado no Diário do Governo nº 82 – 2ª série de 8 de Março de 1932.
Pela sua acção fez ressurgir os Bonecos de Estremoz, cuja produção tinha cessado com a morte de Gertrudes Rosa Marques (1840-1921) em 1921. Tal ressurgimento foi conseguido recorrendo primeiro à velha barrista Ana das Peles (1869-1945), que foi o instrumento primordial dessa recuperação e depois ao Mestre oleiro Mariano da Conceição (1903-1959) - O “Alfacinha”, o qual foi o instrumento de continuidade dessa recuperação.
No período que esteve em Estremoz e que se prolongou até 30 de Setembro de 1945, foi vereador do Pelouro da Cultura da Câmara Municipal de Estremoz entre 1938 e 1945, durante dois mandatos do então Presidente da Câmara, Engº Manuel Bicker de Castro Lobo Pimentel. São de sua autoria a maqueta em barro e em tamanho natural do Monumento aos Mortos da Grande Guerra e da Fonte do Sátiro, ambos em Estremoz.

Marques Crespo, o receptor do bilhete-postal
José Lourenço Marques Guerreiro Crespo (1871-1955), médico, maçon, membro do Partido Republicano Português e Presidente da Câmara Municipal de Estremoz (1923-1926). Foi fundador e director do semanário regionalista “Brados do Alentejo” (1931-1951), fundador da delegação da Cruz Vermelha Portuguesa de Estremoz, membro da comissão fundadora do Teatro Bernardim Ribeiro e Presidente Honorário do Orfeão Tomás Alcaide. Publicou entre outras obras, a monografia “Estremoz e o seu termo regional” (1950).

Estremoz doutros tempos
O facto de o bilhete-postal ter sido expedido apenas na véspera de Natal, também merece alguma reflexão. Decerto que o remetente sabia que no dia de Natal não havia distribuição domiciliária de correspondência, pelo que a missiva só seria recebida já depois do Natal. O que é que o terá levado a expedir o bilhete-postal postal só na véspera de Natal? Não sei. Todavia, posso admitir como plausíveis duas circunstâncias: – A chegada tardia à estação dos CTT de Estremoz, deste tipo de bilhete-postal de Boas Festas: o nº 42 (preparação do Presépio) de uma série de 12, numerados de 35 a 46, todos com ilustração de Laura Costa e ostentando o mesmo tipo de selo impresso; - O conhecimento tardio por parte do remetente da existência do bilhete-postal nº 42 (preparação do Presépio).
O endereço do destinatário resume-se ao nome deste e não inclui o nome do arruamento nem o número de porta. Para este facto contribuíram, decerto, factores como: - O destinatário ser uma personalidade com destaque na sociedade local e por isso muito conhecido; - O número de arruamentos ser muito inferior ao que é na actualidade; - O brio profissional dos carteiros que os levava a empenhar-se na missão de “levar a carta a Garcia”.

Epílogo
Sá Lemos considerara recuperada a produção de Bonecos de Estremoz em artigo publicado no jornal Brados do Alentejo, em 10 de Novembro de 1935. Ainda nesse mesmo ano, os Bonecos de Ana das Peles participaram na “Quinzena de Arte Popular Portuguesa” realizada na Galeria Moos, em Genebra. Em 1936 estiveram presentes na Secção VI (Escultura) da Exposição de Arte Popular Portuguesa, em 1937 na Exposição Internacional de Paris e em 1940 na Exposição do Mundo Português. Nesta exposição estiveram também expostos os Bonecos de Estremoz de Mestre Mariano da Conceição, os quais no pavilhão expositor eram pintados por sua mulher Liberdade da Conceição (1913-1990), face à impossibilidade de Mestre Mariano estar presente por ser funcionário público.
Os Bonecos de Estremoz adquiriram notoriedade pública e projecção internacional com a Exposição do Mundo Português em 1940, de tal modo que os CTT os utiliza como motivo dos bilhetes-postais de Boas Festas de 1942. Deve ter sido uma suprema felicidade para Sá Lemos, que através do bilhete-postal endereça "um abraço de Boas Festas" ao seu amigo Marques Crespo, o qual através da missiva pôde constatar que os Bonecos de Estremoz andavam a ser divulgados pelos CTT através de mensagens natalícias.
Não há dúvida que a mensagem, bem como o seu contexto e o grafismo, legitimam completamente o título escolhido para o presente texto.

Hernâni Matos
Publicado inicialmente em 23 de Janeiro de 2024

quarta-feira, 17 de dezembro de 2025

O Natal na Azulejaria Portuguesa


Natividade ou Adoração dos Pastores (séc. XVI- c. 1580).
Painel de azulejos (500 x 465 cm) atribuído a Marçal de Matos.
Museu Nacional do Azulejo, Lisboa.

Ao longo de mais de cinco séculos, o azulejo tem si usado em Portugal, como elemento associado à arquitectura, não só como revestimento de superfícies, mas também como elemento decorativo.
Pela sua riqueza cromática e pelo seu poder descritivo, o azulejo ilustra bem a mentalidade, o gosto e a história de cada época, sendo muito justamente considerado como uma das criações mais singulares da Cultura Portuguesa e um paradigma da nossa Identidade Cultural Nacional.
A temática do património azulejar português é diversificada e inclui, naturalmente, o tema “Natal”, objecto do presente post, ilustrado com imagens de painéis apresentados sensivelmente por ordem cronológica e legendados com a informação que nos foi possível recolher.

Publicado inicialmente a 29 de Novembro de 2011

Retábulo Nossa Senhora da Vida (c. 1580).
Painel de azulejos (500 x 465 cm), atribuído a Marçal de Matos, Lisboa.
Museu Nacional do Azulejo, Lisboa.

Adoração dos Reis Magos (séc. XVII).
Painel de azulejos da Igreja Paroquial de Carcavelos.

A Natividade (séc. XVIII).
Painel de azulejos da Igreja de Arrentela, Seixal.

A Natividade (1720-22).
Painel de azulejos atribuídos ao pintor Manuel da Silva,
 fabricados na Olaria de Agostinho de Paiva, em Coimbra.
Claustro da Sé Catedral de Viseu.

Presépio e Adoração dos Reis Magos (Meados do séc . XVIII).
Painel de azulejos (174 cm x 280 cm) da Arquidiocese de Évora.

Adoração dos Reis Magos (séc. XVIII).
 Painel de azulejos da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, Salvador, Bahia.

A Adoração dos Magos (finais do séc. XVIII).
 Painel de azulejos (1520 mm x 1230 mm)
 da autoria de Francisco de Paula e Oliveira,
 produzido na Real Fábrica de Louça, ao Rato, em Lisboa.
Museu da Cidade, Lisboa.

Natividade (1746 - 1754). Painel de azulejos portugueses.
 Igreja Basílica do Senhor do Bonfim. São Salvador, Bahia. 

Adoração dos Reis Magos (1760-70).
Painel de azulejos (197,6 x 293 cm), fabrico de Lisboa.
Museu Nacional do Azulejo, Lisboa. 

Os Reis Magos (1945).
 Painel de azulejos (131,8 x 132 cm), da autoria de Jorge /Barradas,
 produzido na Fábrica Cerâmica Viúva Lamego.
 Museu Nacional do Azulejo, Lisboa.